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Cientistas brasileiros projetam inovações em válvula cardíaca: “Ciência brasileira está em nível de excelência mundial”

Pesquisadores buscam o aperfeiçoamento da válvula aórtica de Wheatley, que pode representar uma revolução médica em tratamentos cardiovasculares

Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) comprovam que a população do Brasil está envelhecendo. Em uma década, o número de idosos passou de 11,3% para 14,7% da população. Esse novo perfil impacta nas políticas de saúde pública, em que muitas doenças relacionadas à idade se tornam mais comuns. Uma delas é a estenose aórtica.

De acordo com a Sociedade Brasileira de Hemodinâmica e Cardiologia Intervencionista (SBHCI), a estenose atinge de 2% a 5% da população mundial e é decorrente da degeneração da válvula aórtica, dificultando a saída do sangue do coração para a aorta – principal vaso sanguíneo do coração – e comprometendo a circulação. O aumento no número de casos dessas condições tem sido elevado nos países subdesenvolvidos, onde as doenças cardíacas reumáticas são preponderantes.

Em quadros graves de estenose aórtica, a única alternativa viável para garantir uma melhoria na qualidade de vida do paciente é um transplante. Esta operação consiste em substituir a válvula natural disfuncional por uma artificial (ou prótese). Há numerosos tipologias de próteses disponíveis, e a escolha mais apropriada vai depender do cenário vivido de cada paciente. Em geral, as poliméricas são aquelas que possuem maior vida útil. Porém, elas requerem tratamentos com os medicamentos denominados anticoagulantes na fase pós-operatória.

Foto: Reprodução/Youtube – Hugo Luiz Oliveira desenvolveu pesquisas sobre modelos matemáticos e simulações computacionais de maneira a aprimorar a Válvula de Wheatley

Os anticoagulantes são utilizados para ‘afinar’ o sangue, ou seja, impedem a formação de coágulos e facilitam a circulação sanguínea. Esse tipo de tratamento medicamentoso requer extremo cuidado e atenção do paciente sobretudo com sangramentos para evitar risco de complicações.

CeMEAI à frente do projeto

Recentemente, uma válvula polimérica com design inovador ficou mundialmente conhecida como Válvula Aórtica de Wheatley. O diferencial deste dispositivo está na possibilidade de se dispensar o paciente de fazer tratamentos exatamente com anticoagulantes. Este é o ponto onde o Centro de Ciências Matemáticas Aplicadas à Indústria (CeMEAI) está inserido em um projeto que pode revolucionar a vida de milhões de pessoas afetadas pela doença.

Válvula Aórtica de Wheatley

Professores do Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação (ICMC), da USP, em São Carlos, os pesquisadores José Alberto Cuminato e Gustavo Buscaglia lideram um projeto com o auxílio de Hugo Luiz Oliveira, atualmente professor da Unicamp, para desenvolver pesquisas sobre modelos matemáticos e simulações computacionais de maneira a aprimorar o dispositivo.

Entendendo a válvula de Wheatley

A ocorrência da estenose com maior incidência na população idosa mundial possibilitou o surgimento de técnicas de substituição de válvulas do corpo humano pelas artificiais desde a década de 1960. Porém, o procedimento é invasivo e o tratamento demanda elevados custos financeiros. Sendo assim, como oferecer uma alternativa mais viável economicamente sobretudo para países em desenvolvimento?

Foi pensando nesse contexto que o professor, pesquisador e cirurgião cardíaco escocês David J. Wheatley decidiu, em 2012, empenhar seus próprios recursos para custear os protótipos que iniciaram a criação de uma válvula polimérica com folhetos em forma “S”.

“Ao patentear este dispositivo, Dr. Wheatley pretendia proteger a válvula inovadora de interesses comerciais predatórios, o que desviaria o projeto de sua finalidade. O objetivo central é colocar à disposição da população um dispositivo aórtico altamente eficiente com custo reduzido, favorecendo, sobretudo, países de baixo e médio nível de desenvolvimento econômico”, explica Oliveira.

Ponte Europa – Brasil

Após um longo período de dedicação ao estudo e tratamento de doenças em válvulas cardíacas em diferentes partes do mundo, Wheatley confeccionou protótipos de sua válvula inovadora e realizou testes laboratoriais preliminares. Entretanto, o britânico precisava aprofundar seus conhecimentos sobre o comportamento mecânico do dispositivo, problema intrinsecamente de Matemática e Engenharia, por isso acionou o colega Sean McKee, da Universidade de Strathclyde, no Reino Unido.

Curiosamente, McKee foi orientador de doutorado de Cuminato, em Oxford, e atualmente pertence ao corpo docente de Strathclyde. Daío elo entre a universidade britânica e o CeMEAI em prol do desenvolvimento da válvula de Wheatley. A ideia original era utilizar a modelagem matemática e a simulação computacional para oferecer ainda mais eficácia ao equipamento. Neste contexto, Oliveira embarcou no desafio e relata que os resultados são satisfatórios para tornar a pesquisa ainda mais grandiosa.

“Trata-se de um modelo matemático bastante complicado de se fazer. É necessário compatibilizar várias necessidades e funções disciplinares. Dr. Wheatley, como cirurgião cardíaco, possui uma experiência fisiológica, cirúrgica, funcional do dispositivo. A válvula se abre quando o sangue emerge do ventrículo esquerdo (quando o coração contrai) e se fecha para evitar que o sangue retorne da aorta quando o coração relaxa. Estas observações da realidade precisam ser traduzidas em equações matemáticas passíveis de serem resolvidas por um computador. A dinâmica do movimento envolve conceitos da Mecânica dos Sólidos, Mecânica dos Fluídos, métodos numéricos não lineares, técnicas de remalhamento automático, contato de corpos flexíveis e computação de alto desempenho. Mesmo com todas essas complexidades envolvidas, nós conseguimos implementar um modelo que está em fase operacional, inclusive, sendo capaz de reproduzir com fidelidade os dados observados experimentalmente”, conta Oliveira.

Dessa forma, o CeMEAI está à frente de um projeto único no Hemisfério Sul – como o próprio Oliveira narra – de modelagem matemática e simulação computacional de forma a testar melhorias na evolução tecnológica da válvula muito antes de se avançar para testes clínicos, economizando tempo e recursos.

O entendimento do modelo computadorizado é de suma importância para que a equipe do ICMC teste hipóteses de projeto e proponha melhorias no design do dispositivo de Wheatley, colaborando com a precisão e eficiência dos fenômenos físicos necessários para descrever a válvula.

Dispor de um modelo computacional de alta fidelidade reduz não apenas o tempo empregado na concepção da válvula e de seus mecanismos intrínsecos, como também os custos envolvidos na produção física de protótipos e testes experimentais. 

Etapas do processo

Para conseguir a aprovação dos mais importantes órgãos reguladores de saúde no planeta, há diversas etapas a serem cumpridas no processo. Oliveira lembra que antecipar situações adversas futuras da válvula pode representar o começo de algo muito importante para a humanidade.

Por exemplo, os pacientes com estenose aórtica na atualidade têm três alternativas de tratamento: com válvulas mecânicas, válvulas poliméricas e os dispositivos com componentes biológicos. No último caso, não há a necessidade de medicamentos anticoagulantes.

Entretanto, a contrapartida é a obrigação de se trocar a válvula, em média, a cada dez anos. “Se o paciente recebe uma válvula que tenha componentes biológicos, ele não precisa tomar o anticoagulante. O problema é que a válvula precisa ser substituída ao longo do tempo. Ou seja, será necessário fazer uma nova operação para a troca assumindo todos os todos os inconvenientes e os riscos de uma cirurgia convencional”, completa Oliveira.

Pensando em tal realidade, a equipe do CeMEAI se propôs a realizar a modelagem computacional da válvula de Wheatley a fim de reproduzir o seu comportamento mecânico em condições de serviço. Esta ação permite que quaisquer melhoramentos eventualmente apontados possam ser testados virtualmente sem a necessidade de produção de novas peças a cada alteração proposta. Os experimentos vão no sentido de garantir que a válvula abra e feche rapidamente e que a tensão de cisalhamento no fluxo sanguíneo esteja sempre acima de um limite crítico. Com isso, o sistema evita a formação de trombos (que pode originar trombose) e garante uma vida útil maior do que a válvula convencional.

Foto: Divulgação – Testes de simulação computadorizada para aperfeiçoar a Válvula Aórtica de Wheatley

Para alcançar o resultado proposto, Oliveira e a equipe do CeMEAI testaram vários softwares. A opção que melhor se adequou às necessidades do projeto de pesquisa foi o solver LS-DYNA, o qual permitiu reproduzir fielmente no computador o desempenho mecânico e fluidodinâmico que a válvula aórtica de Wheatley apresenta em condições controladas de vazão e pressão.

Desde 2019, o LS-DYNA foi faz parte do pacote tecnológico da ANSYS, empresa líder mundial no ramo de simulações de softwares de engenharia. O solver foi escolhido pelo grupo do CeMEAI por sua capacidade de simular com precisão e eficiência os fenômenos físicos não lineares necessários para descrever o comportamento da válvula.

Exposição do projeto chegou à Câmara

O desenvolvimento do trabalho de Oliveira atraiu olhares no Brasil e no exterior. A ANSYS entrou em contato com o pesquisador no sentido de convidá-lo a uma sessão pública na Câmara dos Deputados, em Brasília. O objetivo era a discussão do papel vital dos experimentos com simulação computacional para impulsionar a inovação em tratamentos e dispositivos – no caso a válvula de Wheatley.

Diálogo da Comissão de Saúde com destaque para projeto do CeMEAI sobre aperfeiçoamento da Válvula Aórtica de Wheatley – 04/10/2023

A sessão ocorreu no último dia 4 de outubro, apresentada pela deputada Sílvia Cristina Chagas (PL) com a presença de membros da Agência Nacional de Vigilância Sanitária do Brasil (Anvisa) e do Comitê Nacional de Ética em Pesquisa em Saúde (Conep). Durante a sessão na Câmara, Oliveira debateu os desafios e as propostas revolucionárias de seu projeto matemático e a importância de um parecer da principal autoridade nacional na área para dar continuidade ao projeto.

“Pudemos estar presentes em Brasília e relatar que tal tecnologia está madura o suficiente e a estamos aplicando na realidade”, reforça Oliveira.

Na sessão aberta à comunidade no canal oficial da Câmara no YouTube , o engenheiro expôs os resultados de sua pesquisa também na presença da Associação Brasileira da Indústria de Tecnologia em Saúde (Abimed) e da Avicenna Alliance, uma associação global com o objetivo de tornar a medicina in silico uma prática padrão no setor de saúde. O termo “in silico” é utilizado para indicar “resultado obtido a partir de simulação computacional”, mantendo a sistemática seguida para outros termos consagrados como in vitro ou in vivo.

“O encontro foi muito positivo. Nós conseguimos estabelecer um diálogo muito importante junto à Anvisa, que se mostrou interessada nas abordagens in silico. Os próximos passos caminham na direção de agências reguladoras da Europa e Estados Unidos, ou seja, traçar diretrizes para auxiliar a confecção e a apresentação de estudos in silico para fins de homologação”, opina Oliveira.

Ciência brasileira no topo

Além de proporcionar a eficácia de equipamentos médicos e dispositivos, a simulação matemática também ajuda a compreender o funcionamento do corpo humano e fornece informações importantes para apoiar a tomada de decisões clínicas. Para Oliveira, trabalhar em um projeto arrojado, como é o de David Wheatley, evidencia que o setor científico brasileiro se posiciona num patamar de excelência internacionalmente.

Foto: Reprodução/TV Câmara – Detalhe de apresentação de Oliveira na Câmara dos Deputados, em Brasília

“Esse projeto representa uma oportunidade singular para a Ciência brasileira como um todo, e, em particular, para a Ciência do estado de São Paulo. A pesquisa desenvolvida no CeMEAI está em linha com os melhores e mais exigentes padrões de qualidade internacionais. Para nós, brasileiros, participar de um projeto desta amplitude significa poder impactar positivamente a vida de milhares de pessoas, trazendo melhoria de qualidade de vida, reduzindo custos, ampliando o acesso a dispositivos cardíacos de alta eficiência. Em última instância, trata-se de um projeto de extrema relevância pública; em que ciência de ponta é colocada em prol do benefício de todos”, conclui o pesquisador.

Premiação

O projeto de Oliveira foi protagonista do Prêmio Pós-Doc USP, honraria concedida pela instituição na Escola Politécnica (Poli-USP), em São Paulo, de 17 a 19 de outubro. A “Modelagem Matemática e Simulação Numérica da Válvula Aórtica de Wheatley”, título do trabalho, recebeu o prêmio de vencedora na Área de Ciências Exatas e da Terra.

Sobre o CeMEAI

O Centro de Ciências Matemáticas Aplicadas à Indústria (CeMEAI), com sede no Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação (ICMC) da USP, em São Carlos, é um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPIDs) financiados pela FAPESP.

O CeMEAI é estruturado para promover o uso de ciências matemáticas como um recurso industrial em três áreas básicas: Ciência de Dados, Mecânica de Fluidos Computacional e Otimização e Pesquisa Operacional.

Além do ICMC-USP, CCET-UFSCar / IMECC-UNICAMP / IBILCE-UNESP / FCT-UNESP / IAE e IME-USP compõem o CeMEAI como instituições associadas.

Assessoria de Comunicação – CeMEAI

Mais informações

E-mail: contatocemeai@icmc.usp.br

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